Miss Argentina, sem moldura

Se fosse mesmo Argentina, a música deveria ser um tango. Mas é um bolero, e o que me diverte é que Iggy Pop talvez acredite mesmo que fez um tango. Daí me lembro de gringos falando que a capital do Brasil é Buenos Aires. Sempre ouço essa música pensando que houve um esforço para serContinuar lendo “Miss Argentina, sem moldura”

No centenário da morte de João do Rio

Querido João, Hoje é teu centenário. Você há de perdoar o nosso silêncio – de repente, qualquer celebração se torna uma obscenidade diante da marca recém-atingida de quinhentas mil vidas brasileiras perdidas. Isso se puder perdoar, antes, o teu povo abandonado por Deus e desmemoriado por natureza – que tampouco te fez justiça em vida,Continuar lendo “No centenário da morte de João do Rio”

A rima se faz sem virar a esquina

A rima se faz sem virar a esquina A rima é um tapete desarvorado A rima, à espreita, se descortina A rima é um portão vestido emprestado. A rima é rica, tem ares de outono A rima se doa a árvores à toa A rima se dói; quando se magoa, A rima logo procura outraContinuar lendo “A rima se faz sem virar a esquina”

Convalescentes

Logo depois da chuva, o asfalto ainda brilha, mas já foi pisoteado como se deve. Alguns pedaços de luz rasgam caminhos no céu – afinal são só quatro da tarde e eles sabem que o dia ainda está longe de acabar.  Em frente ao museu, rostos cobertos de máscaras e protetores plásticos. Quantidades obscenas deContinuar lendo “Convalescentes”

Desiderare, um grande mormaço

– Precipitei-me. Estava a chover em São Paulo. – Ahaha. Em Goiás estará a chover em breve. Por ora, mormaço. – Faz a etimologia de mormaço pra mim. Não tenho ideia. – O que aconteceu com o “a gente sempre pode pesquisar ao invés de perguntar”? – Achei mais maneiro te trucar do que acionarContinuar lendo “Desiderare, um grande mormaço”

Anacrônica

Pra direita, um esboço de praça e restinhos de vila. Pra esquerda, o bairro gentrificado, o tráfego de avenida e a vila que já não é vila, como escreveu Aldir Blanc. Esquerda, afinal. Entre dois condomínios, um portão sopra o R arrastado do interior e guarda um trecho anacrônico de terra batida. Ao lado doContinuar lendo “Anacrônica”

O fio do novelo

Para Mauro Calliari Endereço do hostel no bolso, celular carregando no quarto – afinal, não há roteador que capte sinal de internet nas ruas de terra sinuosas de Nagarkot. A própria chegada envolveu carregar as malas por um estreito trecho a pé, onde apenas alguns tuk-tuks barulhentos, frágeis e fumacentos insistem em entrar. Olhos atentos,Continuar lendo “O fio do novelo”

[esparsos] Canção da Negação

“Me paga agora o valor dos três álcool gel que tu estourou e vaza daqui, seu bolsominion de merda”. Notei que meu usuário ficou tenso e percebi uma de suas mãos subir fechada bem ao meu lado e até ouvi um grunhido, mas nada aconteceu – uma pessoa vestindo um jaleco esquisito e escuro, bastãoContinuar lendo “[esparsos] Canção da Negação”

[esparsos] Kunjapuri, Rishikesh

I Feliz aniversário, mestre Marugananda, eu não vou poder ficar e ajudar na sua festa por causa dessa mulher, Taki, a hóspede peruana que estava aqui no retiro semana passada. Foi ela quem me mostrou esse leque de penas de pavão quando estávamos do outro lado do rio hoje, durante o aarati, e que compreiContinuar lendo “[esparsos] Kunjapuri, Rishikesh”

[notas insones] Jayme Ovalle

Ovalle foi às lágrimas quando estava na casa do Bandeira e descobriu que o próprio Bandeira fazia seu café – e não uma esposa, namorada ou mesmo uma empregada. Bandeira obviamente nunca tinha visto a própria solidão do modo como Ovalle a viu, talvez nem mesmo a considerasse solidão. Mesmo assim, pegou o mote eContinuar lendo “[notas insones] Jayme Ovalle”