“Me paga agora o valor dos três álcool gel que tu estourou e vaza daqui, seu bolsominion de merda”.
Notei que meu usuário ficou tenso e percebi uma de suas mãos subir fechada bem ao meu lado e até ouvi um grunhido, mas nada aconteceu – uma pessoa vestindo um jaleco esquisito e escuro, bastão na mão e apito na boca se aproximou de nós falando ainda mais alto e nos afastando um do outro assim que o humano vendendo álcool em gel se enfureceu com alguns frascos que meu dono havia estourado no chão momentos antes. O punho fechado relaxou e logo senti sua mão me tirando da frente do pescoço roliço para me colocar outra vez à frente das narinas fumegantes que esquentavam minhas dobras desde que saí daquela embalagem apertada, que sufocava o menor dos meus pensamentos.
Mas, agora, que alegria ganhar as ruas! Que alegria ganhar ar puro! Quantas pessoas sorrindo pra mim e, acima de tudo, quantas falas e expressões que eu nunca tinha ouvido no laboratório – Congresso, manifestação, fazer uma live e, mais recentemente, bolsominion de merda.
Quer dizer, não poderia significar nada ruim, poderia? Uma festa tão bonita. Mas o fato é que o vendedor do álcool em gel não estava sorrindo e me lembrava das pessoas que tínhamos ouvido mais cedo naquela caminhada, e que pareciam, de alguma forma, se opor a nós dizendo “vai pra casa, trouxa”, “se não tem medo tira a máscara, palhaço”, ou seja, mensagens que eu não entendi e ainda não entendo totalmente, mas que em nada me impedem de curtir essa reunião contagiante.
As últimas palavras que ouvi naquele laboratório branco e frio foram as de um cientista-chefe exasperado, dizendo que precisávamos agir depressa, pois havia um vírus letal à solta e apenas nós poderíamos minimizar os níveis de disseminação e contágio. Após alguns testes eu já estava em um envoltório plástico, impaciente para cumprir minha missão e para mostrar a todos como minhas seis camadas de tecido microporoso de nanopartículas antivirais se provariam imbatíveis diante da terrível pandemia que estava acometendo os seres humanos. Agora, em meio a todas estas pessoas, percebo que posso cumprir o meu propósito. Elas começam a caminhar e cantar todas juntas e, então, tenho a convicção de que estou no lugar certo e na hora certa: “de um povo heroico o brado retumbante…”, salvarei muitas vidas e resistirei a cinquenta lavagens – estéril, atóxica, apirogênica e disponível na cor azul.

Meu humano me ajeita em seu rosto; três outras pessoas se aproximam, todos se abraçam – não entendo por que são tantos e nem por que estão aglomerados, se uma doença tão contagiosa os espreita. Também não entendo por que ele interrompe tanto minha missão: estou outra vez na frente do seu pescoço, os pelos da sua mandíbula nas minhas dobras superiores. Também já estive no topo da sua cabeça, depois em uma das suas orelhas e até em seus olhos, sem protegê-lo efetivamente.
Há gotículas nocivas por toda a parte e já filtrei várias delas. Porém, outras milhares me atingem quando alguém se aproxima de nós muito mais do que o recomendável e pergunta: “pra quê essa máscara, meu lindo? Caiu na fake news? Não tem pandemia nenhuma!”. Essa mesma boca se encaixa na boca do meu humano e sua mão intrusa me arremessa para a multidão, que segue cantando – “desafia o nosso peito a própria morte” – se afastando e levando o meu usuário desprotegido para longe de mim. Que desastre, que ocorrência imprevista! Quais as chances de ele conseguir deter este terrível vírus sem mim? Com tanta saliva sendo inoculada em sua boca?
Por sorte, me enganchei em uma superfície verde e amarela, certamente as cores favoritas desta equipe, presentes nas pinturas nos rostos deles, em seus paramentos e nas poucas máscaras que vejo pelo caminho – “Não tem pandemia nenhuma!”, dissera a voz aguda. Desconsiderei esta teoria infundada e passei a avaliar minha situação atual: estou me movendo e, pelo o que detectei, estou na aba de uma espécie de capacete ou EPI, bastante quente devido à cabeça do humano que o veste. Há incontáveis germes ao nosso redor, mas nada parecido com um vírus letal cruzou meu caminho até agora.
Aproveito para contemplar os espaços por onde passamos. Um grande eixo. Curvas, vãos, palácios e linhas. À direita, uma imensa estrutura retangular em tons de branco e cinza, elevada do plano horizontal como se flutuasse e revestida por pequeninos quadrados vazados, talvez um complexo sistema de filtros? À frente, um trecho de água em um círculo e, oh, um efeito ótico! Como os da estação de microscópio! A água refletia, na verdade, uma semiesfera branca fincada no chão, de onde vi inúmeras pessoas entrando e saindo por rampas laterais que a atravessam por dentro e a circundam por fora.
Aqui, tudo difere dos espaços que eu vi na linha de produção que originou a mim e aos meus semelhantes. Aqui é mais claro e brilhante, há uma bola gigante de luz e calor suspensa bem no alto; há barulho, mas não de máquinas, e sim das pessoas, que seguem cantando: “Ó Pátria amada, idolatrada, salve, salve!”
Um olhar, um sorriso. Alguém me nota, me recolhe e exclama: “está impecável!”. Ignoro como esta pessoa pode emitir um aval técnico sem qualquer método ou assepsia. Ignoro, mais ainda, o impulso que a leva a me colocar em seu próprio rosto, sem hesitar.
O portador do EPI onde eu há pouco descansava nos abraça e levanta um dos braços, segurando um objeto retangular do tamanho da sua mão na posição vertical. É como uma extensão do seu braço, uma tela luminosa que, logo compreendo, está refletindo a nós mesmos – olha só o meu encaixe perfeito no orbicular dos olhos e a vedação completa do masseter, uau!
Estes humanos são bem diferentes do meu primeiro dono – eles não têm tantos pelos no rosto e os pelos no alto de suas cabeças têm uma inusitada cor prateada, quase branca; ambos taparam seus olhos com um EPI de lentes escuras, o que indica que estão razoavelmente precavidos, embora precaução nenhuma justifique o uso de uma máscara contaminada na própria face.
Um aviso sonoro parece vir do mesmo objeto retangular onde nos vemos. O humano começa a falar bem perto do aparato: “Cadê você, meu guerreiro? Não, na Biblioteca foi a concentração, passamo pelo Museu Nacional agora … tá bem cheio, mais fácil a gente se encontrar no Panteão e vamo junto pro Planalto, pode ser? Tamo aqui te esperando, bem na frente do Pombal”.
Ele ainda falava quando ouvi um novo aviso sonoro, desta vez emitido pelo nariz e boca que me vestem: uma intensa expulsão de ar, saliva e umas 40.000 gotículas infecciosas de diâmetros variados. “Essa máscara tá me dando alergia, antes eu não tava espirrando…” – diz a voz, bafejando nas minhas dobras internas e inexplicavelmente atribuindo a mim os efeitos das suas inconsequências higiênicas. Estou aqui trabalhando contra grandes adversidades e fazendo o melhor que posso, senhora.
Agora estamos parados e diversos rostos desnudos passam por nós. Vários outros vestem máscaras, ainda que rudimentares e sem acabamento, como que improvisadas. Algumas são rígidas, típicas das equipes de análise tóxica em áreas de guerra química – o que me lembra que o humano ao nosso lado tinha mesmo falado algo sobre um guerreiro. Outras parecem apenas decorativas, ritualísticas talvez – há canto e clamores coletivos, afinal. Há, ainda, as semelhantes a mim, mas sempre modificadas de alguma maneira, mera performance ou entretenimento. Questiono o uso singular destas máscaras em uma situação de pandemia declarada. Será que meu cientista-chefe estava enganado? Será que o vírus é mesmo histeria, como ouvi por aqui?
De repente, algumas pessoas apontam seus dedos para o alto e gritam: “pombos!”, sinalizando algum tipo de revoada, mas é tudo muito rápido – logo somos alvo de um jato amarronzado, líquido e malcheiroso, que meus donos sequer perceberam.
“Ô, meu guerreiro, até que enfim!”. Para um guerreiro, este humano parece fundamentalmente despreparado, lento e desprovido de apetrechos básicos para qualquer tipo de batalha. Trocam contato físico, abraços, saliva, conseguimos conquistar com braço forte, blablabla, minha imundície me torna inútil. Ineficaz. Recomeçamos a andar e ainda ocupo um rosto, mas não sei mais que guerra é essa.
A caminhada é rápida até nos juntarmos à multidão. Agora, porém, é diferente; não é só o local solene diante de nós, agora há um líder e um único grito nessas gargantas: “mito! mito! mito!”. Algo novo era transmitido, algo mais pesado se sustentava no ar. Eles estão enganados.
Separado por duas grades, o capitão deles não usava máscara. Estendia a mão a todos e o guerreiro logo sugere que devemos nos aproximar. Estamos bastante perto e ele até já esticou seu braço para o aperto de mão, mas meu humano sofre um novo acesso, desta vez na direção das grades- “não aguento mais essa máscara idiota!” – e me retira do rosto com impaciência.
Incomodados com o espirro, alguns humanos tentam nos afastar das grades, mas é tarde: a mão que me segura também está esticada e, com o choque, traçamos um semicírculo no ar, nos esfregando na dermatite seborreica do queixo do capitão. Um soco? Um beijo.
Terminamos no chão. Meu humano se levanta. Eu fico. Milhares de pernas e pés tornam o ambiente escuro, até o momento em que a multidão começa a se desfazer. Meus movimentos ficam limitados às pernas em que me enrosco e que me conduzem por distâncias curtas e aleatórias, pisoteando meu policarbonato altamente tecnológico, testado à exaustão e que se provou resistente a todos os vírus que encontrei, mas não à displicência humana que, por fim, me venceu.
Ainda vislumbro uma fração de chão poroso e acinzentado. Mais à frente, dois pares de pernas abertas e imóveis, que não dispersaram com a multidão. “São os Dois Guerreiros” – diz a guia turística ao grupo visitando a Praça hoje – “mais conhecidos como Candangos, um dos símbolos da cidade e homenagem aos que lutaram contra a fome, a falta de hospitais e más condições sanitárias. São de bronze e têm oito metros de altura”.
Esta imagem, entretanto, me vem entrecortada, pois estou num nível muito baixo: a minha visão predominante é a das incontáveis partículas em suspensão flutuando acima de mim e ao meu redor. Elas me observam e me acolhem, como se me dissessem que por aqui devem pairar, por tempo indeterminado. Algumas delas planam, descem e se alojam docemente nas dobras do meu tecido deteriorado, enfezado e contaminado. Uma profusão de patógenos esféricos, envoltos por uma coroa de proteínas em forma de espinhos. É bonito.
Relembro da voz estridente: “não tem pandemia nenhuma!” e compreendo que essa beleza é invisível aos olhos humanos – seria melhor se não o fosse? Melhor ser uma máscara que tudo vê ou melhor ser humano e poder negar tudo aquilo que não se vê?
Rajadas de vento me encobrem de poeira, terra vermelha e pedaços de flores roxas que hoje começaram a cruzar o plano azul sempre acima. O teu futuro espelha essa grandeza. Ainda sentia o calor vindo lá do alto, mas não havia multidão e nem canto no final.
Brasília, 15/03/2020.