No centenário da morte de João do Rio

Querido João,

Hoje é teu centenário. Você há de perdoar o nosso silêncio – de repente, qualquer celebração se torna uma obscenidade diante da marca recém-atingida de quinhentas mil vidas brasileiras perdidas. Isso se puder perdoar, antes, o teu povo abandonado por Deus e desmemoriado por natureza – que tampouco te fez justiça em vida, te reduzindo tantas vezes a gordo, amulatado e homossexual. Poucos avanços por aqui nesse sentido.

Mesmo assim, te celebro nas mulheres que mendigam, nos versos dos presos que ainda não assinam seus nomes por extenso. Te vejo nas pequenas profissões que você tanto observou e que, no Brasil de hoje, se multiplicam às dezenas – os ciganos e estivadores de nossos dias fazem app, os velhos cocheiros atendem pelo nome de uber e, nas minhas voltas pelo quarteirão, cronometradas pela peste e com o meu rosto tapado por máscaras, te ouço dizer “não sejamos excessivos para os humildes”, apesar de nunca ter ouvido a sua voz.

Enquanto cantar a rua não é possível, te celebro da única maneira viável hoje: na derrota brasileira, na falta de ópio e na fome negra que em muito transcende o manganês e o carvão dos teus dias. Te celebro sem teatro, sem cordões, apenas buscando formas de remediar a Fatalidade, tal qual as mulheres que te vendiam orações. Ainda assim, te celebro hoje, te celebro sempre.

Com amor,

Isabella.

João do Rio, Wikimedia Commons

6 comentários em “No centenário da morte de João do Rio

  1. enquanto a memória se mantiver viva jamais seremos derrotados. cantaremos a rua, honraremos os hoje mais de 500 mil vidas perdidas, estaremos lado a lado com o gordo, amulatado e homossexual, e a tantos mais que relatas, e sim, dentro de nós e para fora de nós a memória eternizará o novo que em nós nascerá. o meu abraço.

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